domingo, 23 de novembro de 2014

Bourdieu: uma nova percepção da realidade


"deve-se distinguir entre os leitores, os comentadores, que lêem para falar em
seguida do que se leu; e os que lêem para fazer algo, para fazer avançar o
conhecimento, os autores".
Pierre Bourdieu (1930-2002)

Pierre Bourdieu (1930-2002) é considerado um dos grandes pensadores do século XX. Começou sua produção intelectual na década de 1960 e desenvolveu, ao longo dos anos, estudos sociológicos com a perspectiva de denunciar a dominação social que se dá na escola e nas relações sociais de uma forma geral. Por meio de seus estudos no âmbito da Sociologia, apresentou novos conceitos, dentre os quais se destaca: o habitus, a violência simbólica, o conceito de campo e os tipos de capitais.

O conceito de habitus é importantíssimo para a compreensão das práticas assimiladas como legitimas e ilegítimas, numa determinada sociedade e num determinado tempo histórico. Pode-se entender por habitus o resultado das interações, perceptíveis ou não, que definem a forma de ser do indivíduo numa classe social. Para tanto, Bourdieu critica a formação das escolhas pessoais, o gosto por, e as formas de comunicação/expressão como construídos (herdados) socialmente e reconfirmado pelas instituições reguladoras, especialmente a escola e família.

A ideia de violência simbólica foi uma das grandes denuncias feita por Bourdieu em sua literatura. Para Bourdieu a violência simbólica se dá pela castração (simbólica) das personalidades, condicionando as pessoas ao padrão coletivo aceitável como legitimo. O processo de violência simbólica se desenvolve ao longo da vida do individuo como um regulador das práticas culturalmente aceitas. Para Bourdieu a escola é um dos mais adequados ninho de agentes violentadores, fortemente regulamentado pela autoridade coercitiva educativa.

O conceito de campo social em Bourdieu representa os espaços de dominação e conflitos entre as classes sociais e as diferentes culturas. Elementos estes que estão em constante subversão entre si com o intento de classificar, desclassificar e reclassificar os padrões legitimizadores. Para que haja condições de sobrevivência nestes campos, segundo Bourdieu, é preciso que se conheçam as estratégias de campo, ou seja, é preciso conhecer quais os valores, ideais, ideologias, utopias, crendices, medos, intentos, omissões, verdades e mentiras de cada diferente campo para, então, ter condições de jogar.

Pierre Bourdieu acreditava que não havia apenas o capital econômico como forma de capital (forma de troca e valor extrínseco). Por isto, concebeu outras formas de capital, a saber: capital cultural, capital social, capital intelectual. O capital intelectual refere-se à instrução acadêmica e nível de conhecimento formal. O capital social refere-se à rede de relacionamentos de cada pessoa. O capital cultural é o resultante da interação de todos os capitais que define o ethos de cada pessoa em um determinado grupo social.

O sistema de escolarização fora outro objeto de investigação para Bourdieu. Para ele a escola não detinha condições sociais, intelectuais e nem culturais para ser neutra e ofertar um conhecimento de forma igualitária e relevante. Para Bourdieu a escola funcionava como agente de manipulação das classes dominantes com o intuito de desclassificar alguns (grupos minoritários e/ou desfavorecidos). Sendo assim, a proposta de educação para todos era uma dissimulação da verdade e das condições reais de desenvolvimento social.

Pierre Bourdieu trouxe várias contribuições para o desnude da realidade contemporânea. Extrapolou a concepção marxista de vinculação do social meramente condicionado ao processo produtivo e levou-o a perspectivas simbólicas veladas. Para Bourdieu cada pessoa é fruto de conexões limitadas socialmente, culturalmente, intelectualmente e economicamente. E neste duelo de campos os indivíduos se encontram em processo de constante transformação/conflito com fins a desfrutar a aceitação presente.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 15 de Novembro de 2014]

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Desnaturalização da percepção das desigualdades


“A pobreza antes era considerada obra de injustiça. O mundo moderno considera a pobreza incapacidade”.
Eduardo Galeano (1940 -  )

A pobreza, atualmente, tem se tornado sinônimo de ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem. Esta é uma concepção malthusianista (Thomas Malthus, 1766-1834) que defendia que o pobre é pobre por causa de si mesmo, pois não tem determinação (iniciativa), força de vontade e vive de forma desiquilibrada - especialmente no quesito sexualidade, gravidez/natalidade (SCHWARTZMAN, 2004).

Ser pobre, no presente contexto histórico, é encontrar-se de forma análoga com as mazelas da sociedade capitalista. Estar em estado de pobreza é descobrir-se desumanizado (não cidadão). Entretanto, nem sempre fora assim. A figura do pobre antes do século XVI agregava outras percepções conceituais e políticas, eram outras as construções sociais e fraternas a partir da representação da pobreza.

Reforçando a atual concepção de pobreza ALBERT (1992, p. 17 e 18) pondera: “O que é um pobre? Na maioria das sociedades humanas e das épocas da História, o pobre tem sido, com grande frequência, tratado como um coitado, um inútil, um fracassado, um preguiçoso, um suspeito, e até mesmo um culpado. (...) É possível que uma certa tradição européia considere o pobre mais como vítima do que culpado, e isto, numa percepção multidimensional onde se somam a ignorância e a indigência, a desesperança pessoal e a impotência social”.

A deformidade atual na concepção de pobreza e suas derivações não se deram de forma espontânea, foram provocadas, especialmente por dois movimentos históricos a partir do século XVI (DOWBOR, 1994), a saber: 1) A consolidação do Capitalismo como forma de Governo/mercantilização; e, 2) Os impactos da Revolução Industrial nas relações de trabalho e urbanização. Da transição do Capitalismo Industrial (XVII e XVIII) para o Capitalismo Monopolista-Financeiro (XIX e XX) percebe-se o entrelaçar histórico do Capitalismo e a Revolução Industrial – fato este que corroborou para mudanças sociais.

O Capitalismo tem sua forma embrionária entre os séculos XIII e XIV, especificamente com o surgimento da burguesia - nova classe social que almejava lucro por meio das relações comerciais, sendo estes os possuidores de riquezas e dos meios de produção. Contudo, apenas séculos depois o Capitalismo se estabelece como forma de Governo, a partir da queda do feudalismo e, o então, fortalecimento da industrialização - produção, relações comerciais e lucratividade (HUNT e LAUTZENHEISER, 2013).

Os principais autores que perceberam (e idealizaram) esta nova forma de Governo (capitalista-liberal) foram, entre outros: John Locke (1632-1704), François Quesnay (1694-1774) e Adam Smith (1723-1790). Posteriormente, tal sistema fora criticado e denunciado por Karl Marx (1818-1883). A proposta capitalista-liberal defende o Estado Mínimo - redução da intervenção do Governo nas relações mercantis e econômicas, o que favoreceu a desigualdade empresarial e a exploração do trabalhador, o Livre Mercado - ampla concorrência e competitividade, o que desprestigiou os pequenos produtores/comerciantes e forçou a venda de mão-de-obra como forma de subsistência, e, Individualismo - valorização dos interesses pessoais e capacidades individualizadoras acima da coletividade, o que desestabilizou as relações sociais.

A Revolução Industrial (1760-1914, data final aproximada) aconteceu simultaneamente ao processo de consolidação do Capitalismo como opção de Governo (gestão estatal e mercantil), especialmente pelos países ocidentais. As consequências da Revolução Industrial foram devastadoras no quesito social, porém oportunas para o acúmulo de capital. A precarização das condições de vida, do intelecto e do trabalho facilitou a exploração da classe, doravante denominada, operária. O surgimento do operário fez com a figuração do salário aparecesse e se estabelece de forma relacional com o capital. Sendo assim, os salários eram baixíssimos devido às condições de inchaço populacional, qualificação profissional e demanda, o que oportunizou o acumulo de riqueza pelos donos das industrias/comércios e condicionou socialmente os indivíduos a uma forma de relação social individualizada (GIANNOTTI, 2007).

A Revolução Industrial extinguiu o trabalho artesanal, sendo assim o trabalhador não mais detinha o conhecimento sobre o processo produtivo, limitando-se a uma fração da cadeia produtiva, perdendo a noção de identidade produtiva. Outro problema foi o aglomerado de cidadinos que se amontoaram nos centros urbanos a procura de emprego, submetendo-se a condições de vida precárias e desumanas. E, então, houve uma crescente exploração (escravidão) dos trabalhadores por ocasião da iminente situação econômica dos proletariados/operários.

O novo mundo advindo do Capitalismo e da Revolução Industrial fomentou a migração de pessoas a procura de empregos, fazendo-os abandonar suas terras (quase sempre contexto rural), perdendo suas identidades culturais e sociais. Isto fez com que houvesse uma demanda de pessoas superior à demandada de empregos, gerando marginalização, pobreza e subemprego (posteriormente emprego informal). Nestas condições o trabalhador, antes rural agora urbano, não detinha conhecimentos conceituais, apenas técnicos de produção agrícola, que no presente contexto tornou-se inútil por ocasião das máquinas (produção industrializada). Isto favoreceu a exploração dos operários e salários baixíssimos.

Da fusão Capitalismo e Revolução Industrial o trabalhador perdeu a noção de fraternidade, outrora existente no contexto pré-industrial (ou no comunismo primitivo). Isto se deve ao fato de que a precarização da vida do operário o tornou homo economicus – condicionando a ação humana, exclusivamente, a recompensas e sanções econômicas. Sendo assim, as pessoas estavam mais preocupadas com o sustento individual do que com as relações sociais (e o contexto social que estavam inseridos), impedidos de visualizar a pauperização coletiva dos mesmos.

Endossando tais premissas de pauperização NETTO (2010, p. 40, 41, 45, 47) reitera: “As indústrias se expandem, mas simultaneamente ocorre um processo de pauperização da população, com aumento descontrolado da mendicância e dos trabalhadores empobrecidos e socialmente desprotegidos (...) com a dissolução dos feudos, da vassalagem, imensos contingentes é expulso das terras, sem direitos... (...) A pauperização do trabalhador empurra, para o mercado produtivo, mulheres e crianças em terna idade, cujo envolvimento na luta pela sobrevivência não é suficiente para a reprodução digna da vida humana. (...) O processo de organização do trabalho do capital tem por finalidade última a expansão e a concentração do próprio capital...”

A desestabilização social, econômica, agrária, educacional e produtiva fez surgir, inevitavelmente, a figura do pobre como se concebe na atualidade. Dando a entender que pobreza é um desarranjo social com implicações apenas individuais (força de vontade, pensamento positivo, motivação pessoal - concepção malthusianista). Ignorando toda a abrangência coletiva que a temática pobreza circunscreve. Transferindo toda a culpa da pobreza para a zona do individualismo do próprio pobre, ignorando que o pobre exista a partir de uma realidade coletiva (interacionista).

A presente concepção de pobreza associada à ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem são recortes contemporâneos (últimos quatro séculos) daqueles que ignoram a pobreza como fator sociológico, antropológico e histórico. Tais desvirtudes, sumariamente citadas anteriormente, existem efetivamente no contexto da pobreza, apesar de não ser um estereotipo totalizador, nem de representação de classe. Contudo, tais desvirtudes não se deram ao acaso, foram provocadas intencionalmente. Construir a classe social dos pobres seria oportuno para o estabelecimento do Capitalismo e da Revolução Industrial.

Há pobres, na concepção descrita anteriormente, pois estes são necessários ao sistema econômico vigente. É necessário que haja desempregados para manter os salários dos empregados sempre baixos - Marx chamou este intento de exército de reserva do trabalho (HARVEY, 2005). É necessário que haja distanciamento do local de trabalho com relação ao local de moradia para que os indivíduos sejam estimulados a perder a noção de sujeitos sociais coletivos – perdendo, gradativamente, as características próprias/especificidades proletárias (HOGGART, 1973). É necessário que haja relações de consumo e endividamento (parcelamentos, crediários) para que o dinheiro se multiplique por meio dos juros (acúmulo de capital). Tudo isto endossado pela influência da mídia para condicionar os trabalhadores à aceitação das mudanças sociais e econômicas, como denuncia HOGGART (1973).

Há pobres, como se descreve na atualidade, pois estes figuram (estereotipadamente) o papel de criminosos que perturbam a ordem social pré-estabelecida, portanto, precisam ser marginalizados (afastados, recluídos). Contudo, tal percepção de desordem é constituída, intencionalmente, com fins a desconstruir as relações sociais com o referido pobre. Isto é notório, pois ter medo (ou preconceito) do pobre o coloca em zona de desfiliação (CASTEL, 1998) e desfiguração social, distanciando-o dos grupos sociais, rotulando-o de desordeiros e impedindo-o de refletir sobre sua real condição – é a criminalização da pobreza (TELLES, 2001; ZALUAR, 2004).

O pobre para os padrões contemporâneo é uma massa de modelar, inserindo-o (incluindo-o) precariamente na sociedade (MARTINS, 1997), que tende a adequar-se aos interesses do capital, mesmo que estes não percebam e/ou não queiram. Ser pobre, nesta concepção moderna, ao contrário do que se apregoa por causa das suas desvirtudes, é um fetiche do capital, que se dá ao luxo de oprimir a classe operária sob a ilusão de ascensão social. Pobre é estado oportuno para que haja acumulo de capital, de outrem. Ser pobre nos padrões atuais é encontrar-se em processo de não-cidadania (TELLES, 2001). Contudo, nem sempre fora assim, ser pobre, antes do século XVI, valia-se de outras representações, interações e intenções.

A figura do pobre (pessoa desprovida de) sempre existiu deste os primórdios das civilizações, entretanto, o que vem se modificando ao longo dos tempos é a forma de representação social (sujeito de direito, interação coletiva, estereótipo social e representatividade grupal). O pobre é um ser em estado de mutação permanente, assim como as sociedades o são. Desta forma, as transformações histórico-sociais afetam diretamente na subjetividade da concepção da pobreza (CASSAB, 2001).

Na antiguidade teocêntrica o pobre era visto como estado definitivo a partir da vontade divina. Surge a concepção de que quem nasceu numa condição de vida desfavorável foi porque Deus assim o quis, igualmente, quem nasceu numa condição favorável foi, também, por vontade divina. Desta maneira o ser pobre era um estado aceitável socialmente (MOLLAT, 1989; REZENDE FILHO, 2009). A pobreza não era vista como um estigma de desvirtude, mas sim uma condição de vida proposital.

A concepção de que Deus quer que haja pobres fomentou diversas ações da religiosidade. Era necessário encucar nos pobres a ideologia de seu papel social na pobreza. Para tanto, os pobres serviram como recipientes da caridade da igreja, da monarquia e de movimentos religiosos em geral (REZENDE FILHO, 2009). A religiosidade ao mesmo tempo em que acomodava o pobre no estado de pobreza, intermediava os donativos dos favorecidos financeiramente, criando uma rede de assistencialismo e comodismo social.

Enfrentar a pobreza em tempos teocêntricos era enfrentar Deus (leia-se Igreja Católica). Desta forma, o que restava ao pobre era aguardar a intervenção divina, que se dava na ação eclesiástica. Sendo assim, a figura do pobre era internalizada com extrema naturalidade - paisagem (SUSSEKIND, 1990; TELLES, 1993; TELLES, 1998; FELTRAN, 2005), tanto pelo pobre, como pela igreja. Se havia pobres, então, havia igreja – as duas vertentes se complementam (CASTEL, 1998). Para que esta corrente de caridade permanecesse era imprescindível convencer os ricos de contribuírem na igreja e esta por sua vez orquestrar os repassem aos desafortunados.

A economia da salvação (CASTEL, 1998) se estabelece a partir da premissa que Deus escolheu fazer alguns pobres e outros ricos. Isto para que através do compartilhar os ricos pudessem redimir de seus pecados (concepção errônea e anti-bíblica, mas fortemente difundida na época medieval para ratificar a obtenção da salvação por meio das esmolas). Sendo assim, endossa CASTEL (1998, p. 64 e 65): “...estabelece-se um comércio entre o rico e o pobre, com vantagens para as duas partes: o primeiro ganha sua salvação graças à sua ação caridosa, mas o segundo é igualmente salvo, desde que aceite sua condição. (...) ...o pobre pode, não obstante, ser instrumentalizado enquanto meio privilegiado para que o rico pratique a suprema virtude cristã, a caridade...”.

O abastado, assim como o pobre, era estabelecido por vontade divina, cabendo a ambos cumprir seu papel social. O rico partilhava de sua riqueza (por meio da igreja) e o pobre era o receptáculo das caridades. Desta forma a sociedade se “ajustava” coletivamente. Como assegura REZENDE FILHO (2009, p. 3): “Os pobres adquirem, na ótica cristã do período, um caráter de funcionalidade: sempre devem existir pobres, para que os ‘não-pobres’ possam assisti-los, qualificando-se como bons cristãos”.

O problema é que passados alguns séculos os detentores do capital não mais queria dividir suas riquezas com o pobre, nem deixar a igreja ser a intermediaria deste processo “solidário”. Neste ínterim, o teocentrismo enfraquece (razões principais: corrupção interna, má utilização dos recursos, acumulo de riquezas, doutrina ultrapassada, iluminismo, racionalismo), desnudando uma ruptura gigantesca entre igreja e Estado (e a burguesia).

A monarquia (e a classe emergente de burgueses) queria se libertar da obrigatoriedade da igreja em ajudar os pobres, portanto, romperam com a igreja e criaram Estados independentes da religiosidade (ou criaram religiosidades próprias, equivalentes aos interesses do momento). Sendo assim, o Estado, não mais a igreja, se relacionaria com o pobre, rompendo definitivamente com a intermediação eclesiástica. Surge neste momento histórico as políticas públicas governamentais de assistencialismo social.

O Estado, agora detentor da responsabilidade da ordem social, se articula para resignificar o pobre em seus papéis sociais. Desta forma, os Governos criaram leis que asseguravam a assistência regional do pobre e sua emancipação local. Dai registram-se em vários países da Europa leis que determinam as províncias locais a assistir os pobres em suas limitações (moradia, alimentação, trabalho). A partir deste momento histórico o pobre deixa de ser um sujeito pré-definido divinamente em seu estado de pobreza, e agrega a figura de cidadão de direito.

Por volta de 1522 várias cidades da Europa fazem resoluções legais como medida para enfrentamento da pobreza e inserção dos pobres na sociedade local. Estas políticas municipais (provincianas) tinham como princípios: “a exclusão dos estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e classificação dos necessitados, desdobramentos de auxílio diferenciados em correspondência com as diversas categorias de beneficiários” (CASTEL, 1998, p. 73).

O decreto de Moulin, na França, em 1556, é mais um exemplo de tentativa governamental em prol da reintegração dos pobres na sociedade local, segue abaixo o artigo 73 do decreto de Moulin (apud CASTEL, 1998, p. 74): “Ordenamos que os pobres de cada cidade, burgo e aldeia sejam alimentados e sustentados pelos habitantes da cidade, burgo ou aldeia de que forem nativos os moradores, a fim de que não possam vagar ou pedir esmola em outros lugares diferentes daqueles em que estão, os quais pobres devem ser informados e certificados do que é dito acima se, para o tratamento de suas doenças, forem obrigados a ir aos burgos ou povoações onde há hospitais centrais e leprosários a isso destinados”.

Uma das primeiras leis assistencialista e de política de bem-estar social foram as Poor Laws (Lei dos Pobres, também conhecida como Estatuto de 1601). A Lei privilegiava a assistência a três grupos de indigentes, a saber: os válidos, os inválidos e as crianças. Os dois últimos grupos recebiam subsídios monetários, mas no primeiro grupo (os válidos) as províncias tinham a obrigação de socorrê-los e fornecer, a estes, trabalho (BLASS, 2006). Aqui ainda se percebe um resquício da atuação da igreja, pois estas ações assistencialistas se davam conjuntamente com as paróquias locais. A Lei dos Pobres começou a ser questionada a partir do crescimento populacional e por causa das migrações urbanas.

No referido período histórico ainda não havia muitas migrações dos pobres para as regiões ditas prosperas (como se acentua na segunda metade da Revolução Industrial). Então, por esta razão era responsabilidade da província do pobre dar-lhe toda assistência possível numa eventual estado de desempregabilidade e pobreza. Portanto, era responsabilidade do Estado cuidar dos vagabundos (nome não pejorativo, mas denotava aqueles que vagavam) e eventuais peregrinos (reconduzindo-os a suas pátrias/vilarejos). Sendo assim os pobres eram parte constituinte da sociedade – eram cidadãos de fato e de direito.

A identidade do pobre se dava a partir de sua historicidade local, familiaridade e fraternidade coletiva. Por ainda nos referirmos ao período pré-Revolução Industrial tais características eram notórias. As pessoas tinham nos vilarejos suas colônias, a terra lhes fornecia tudo que necessitavam para a sobrevivência, a quantidade de filhos amenizava o ardor da vida rural e ao mesmo tempo consolidava fraternidades (solidariedade), que se expandiam para vilarejos próximos. Por esta razão, o Estado entendia que os pobres eram de responsabilidade regional/local (provinciana).

Obviamente que as províncias não suportariam a pressão da iminente industrialização e que o pobre seria um entrave nesta nova formatação social de ordem produtiva. Por esta razão, as leis faziam valer o caráter de cidadania dos pobres, tentando fortalecer a perspectiva de que o pobre é um cidadão imergente de um grupo social. Sendo, portanto, de responsabilidade coletiva a assistência ao pobre. Contudo, o cenário social (cultural) mudaria drasticamente com o advento do Capitalismo e Revolução Industrial. Tornando o pobre um ser desconexo com a sociedade local, desprovido de legitimação social e desmoralizado culturalmente. Legitimiza-se o Capitalismo como Religião levando as pessoas à “casa do desespero”, como critica Walter BENJAMIN (2013) – texto inicialmente escrito em meados de 1921.

A figura do pobre deixa de ser um tabu religioso teocêntrico, mas também agora deixa de ser um cidadão com historicidade social-política. O pobre desfigura-se nestes dois momentos históricos e reconfigura na contemporaneidade como um ser criminalizado, inferiorizado, desvirtuoso e incapaz. Neste estado de completa rendição ao capital, o pobre se personifica com ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem. Como adverte WILLIAMS (2007, p. 28): “O pobre não é mais visto como um próximo, sendo, então, transformado em estranho, perigoso e indesejável. Nesse período, o pobre foi identificado com a figura do vagabundo, que se transforma no elemento central da representação da pobreza e dos pobres pelas classes dominantes”.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 06 de Novembro de 2014]


::Referências Bibliográficas::
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BENJAMIN, Walter. O Capitalismo como Religião. São Paulo, Boitempo, 2013.
BLASS, Leila Maria da Silva (org). Ato de trabalhar: imagens e representações. São Paulo: Annablume, 2006.
CASSAB, Maria Aparecida Tardin. Jovens pobre e o futuro – a construção da subjetividade na instabilidade e incerteza. Niterói: INTERTEXTO, 2001.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
DOWBOR, Ladislau. Formação do Terceiro Mundo. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FELTRAN, Gabriel de Santis. Desvelar a Política na Periferia: Histórias de Movimentos Sociais em São Paulo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
HUNT, E. K. e LAUTZENHEISER, Mark. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
MARTINS, José de Souza. Exclusão Social e a Nova Desigualdade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.
MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. São Paulo. 1989.
NETTO, Edméia Corrêa. Profissão: assistente social. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
REZENDE FILHO, Cyro de Barros. Os pobres na Idade Média: de minoria funcional a excluídos do paraíso. Revista Ciências Humanas. Universidade de Taubaté (UNITAU), Taubaté, v. 1, n. 1, p. 1-9. 2009.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é Longe Daqui: o Narrador, a Viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania: Dilemas do Brasil Contemporâneo. Caderno CRH. Salvador: UFBA, vol. 6, n° 19, pp. 8-21, jul./dez. 1993.
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ZALUAR, Alba. Integração Perversa: pobreza e tráfico de drogas. Editora FGV, 2004.