segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Charles Chaplin e a exposição estética da pobreza


"Que minha dor seja motivo de alegria para alguém, mas que meu riso jamais seja motivo para a dor de alguém".
Charles Chaplin (1889-1977)

No ápice do cenário de entroncamento do Capitalismo com a Revolução Industrial, tendo em vista suas respectivas historicidades, que Charles Spencer Chaplin (1889-1977) nasce, cresce e se mostra ao mundo como um dos maiores ícones do cinema. Nascido em 16 de Abril de 1889 em Walworth, Londres, Inglaterra. Chaplin teve uma infância de pauperismo e privações diversas, margeando assim disfunções sociais, como endossa BAZIN (2006, p. 09, 10): “Charles Chaplin, abandonado pelo pai alcoólatra, viveu seus primeiros anos na angústia de ver a mãe ser levada para o asilo; depois, quando a internaram definitivamente, na aflição de ser perseguido pela polícia. Era um pequeno vagabundo de nove anos que se esgueirava pelos muros de Kensignton Road. (...) cuja mãe morreu louca, beirou a alienação... (...). De uns anos pra cá, vem se estudando mais seriamente o caso de crianças que cresceram no isolamento, na miséria moral, física ou material, e os especialistas descrevem o autismo como mecanismo de defesa... (...) Carlitos não é antissocial, mas associal, e que aspira a ingressar na sociedade (...). Embora não fosse o único cineasta a descrever a fome, foi o único a conhece-la...”.

Os filmes de Chaplin com certa frequência traziam alguma relação de desnude da pobreza, até porque o personagem Carlitos tipificava o clássico vagabundo. Contudo, Chaplin conseguia ir além de um estereótipo de naturalização da pauperização. Chaplin tateava uma reafirmação das características representativas da classe proletária para além da carência financeira, atributos estes que HOGGART (1973) afirmou tempos depois estar sendo desconstruído intencionalmente, ou seja, a classe proletária está ficando sem classe (identidade, representatividade, tipificação).

Chaplin vale-se da arte cinematográfica para demostrar que no campo da pobreza existem virtudes que os define no âmbito da cidadania (humanização). A exemplo tem-se a representação do personagem Carlitos em O Circo (1928) que faminto e com apenas uma fatia de pão nas mãos, ainda sim compartilha do alimento com uma garota igualmente faminta – demonstrando a fraternidade/irmandade como característica intrínseca nas classes desfavorecidas economicamente. Isto também fica notório Em Busca do Ouro (1925) quando Carlitos faz de sua bota a refeição principal, e com intencionalidade fraternal ele a compartilha.

Charles Chaplin se consagrou como ator, especialmente na figura de Carlitos (conhecido também por: Charlot, The Tramp, O Vagabundo[1] - personagem de inúmeros filmes de Chaplin). Entretanto, Chaplin também atuou como diretor, roteirista, produtor de trilhas sonoras musicais para seus próprios filmes. E por ter total controle sobre suas produções cinematográficas fora, então, possível transparecer seu estranhamento com a sociedade moderna através de uma tragicomicidade imanente à Chaplin (e ao seu cinema).

Chaplin usou o cinema como forma de dialogar com várias temáticas sociais da sua época (algumas destas ainda latentes, mesmo 100 anos depois do surgimento de Carlitos - 1914), a saber: luta de classe, preconceitos sociais, desigualdade social, exploração do trabalhador, desumanização das relações sociais e política. Como acrescenta LOURENÇO (2008, p. 91, 93, 96): “Em suas aventuras, Carlitos descortina as contradições da sociedade moderna, fundada sobre o modo de produção desigual em sua essência. Em síntese, ele é um homem simples, o vagabundo que luta contra as dificuldades quase insuperáveis e que desenvolve a paz e a ordem ao universo apenas pelas suas atitudes humanistas contra o esfacelamento do tecido social. (...) Apesar de possuir características típicas de um anti-heroi, ele está sempre lutando contra sua miserável realidade (...) a pobreza lhe é um infortúnio, não necessariamente uma vergonha. (...) Chaplin não criava um mundo burguês idealizado, seus cenários eram subúrbios, bares populares e guetos, que eram desprezados pela indústria do cinema”.

O cenário da vida cotidiana do “vagabundo” era o fio condutor dos filmes de Charles Chaplin, especialmente os protagonizados por Carlitos. Tal predileção pela narratividade da pobreza não era comum nos tempos de Chaplin, como destaca SKLAR (1975, p. 138): “Pouquíssimos diretores se interessaram por retratar a vida dos pobres ou foram capazes de faze-los; e posto que os cenários de Chaplin pareçam muitas vezes exóticos e estilizados, seus temas são invariavelmente essenciais: como sobreviver, como encontrar comida, abrigo, segurança, companheirismo, amor. Poder-se-á argumentar que os extremos dos seus finais sentimentais são compensações para os extremos do seu realismo social”.

A película Tempos Modernos (1936) é uma das principais obras de crítica ao taylorismo-fordismo (industrialização e mecanicismo produtivo) inerente àquela época. Neste filme, Chaplin começa a provocar reflexões acerca do homem e a sociedade, destacando forte ênfase sobre o processo de desumanização do Capitalismo industrial. Contudo, é válido demonstrar a forma cinematográfica (estética) que os personagens se apresentam na referida película, desnudando algumas especificidades tanto do “funcionário” quanto do “patrão” – desnude do sistema capitalista opressor. Como acrescenta ALVES (2005, p. 66, 67): “Suas (referindo-se a Carlitos) transgressões involuntárias, que são muitas no decorrer do filme, são uma forma inconsciente de denunciar a corrosão da autonomia individual pelo capitalismo moderno. Sua inadequação é quase instintiva, pois, por mais que queira, ele não pode se sbsumir sem resíduos sob seu papel na divisão alienada do trabalho. O que presenciamos é o choque trágico (e cômico) de um homem comum com a realidade estranhada – destaque do autor”.

As representações imagéticas de Tempos Modernos (1936) apresenta o proletariado como uma figura nada carismática/simpática imergidos num conflito social-econômico de proporções constrangedoras e opressoras. Provocando desta maneira debates sobre direitos humanos e desigualdade social a partir do processo produtivo contemporâneo. Talvez, por causa desta magnitude sociológica, Chaplin decidiu fazer em Tempos Modernos a última aparição de “O Vagabundo” nas telas. Ficando para as gerações posteriores um lampejo de denuncia social, como anos depois ele mesmo escreve (CHAPLIN, 1965, p. 403): “Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”.

Para além das representações de classe, ou denúncias sociais do pauperismo, tanto Chaplin como o próprio cinema se mostram como uma ponte possível entre o imaginário adormecido e o real imaginativo esperado pelas platéias. Desta sucessão de conflitos fantasmagóricos, muita das vezes imperceptíveis, que preconiza o cinema como ferramenta da psicanálise, ou vice-versa – desvelando rupturas para além do consciente visível.

A história do cinema se emaranha (margeia e enamora) com a história da psicanálise, isto se fundamenta a partir do marco principal em Freud, especificamente com a obra A Interpretação dos Sonhos em 1899. Sendo que deste a referida publicação os sonhos perderam sua simbologia divina e agregavam, então, a realização de um desejo infantil reprimido (conflitoso). E assim, Freud desnuda o que fora conhecido como inconsistente. A cinematografia personifica os sonhos (de gente acordada), torna visual o mal-estar estrutural da vida e engloba valores soterrados nos espectadores (sujeitos em processo de catástase).

É por meio da aproximação cinema e psicanálise que se torna possível interagir com o obscuro existencial reprimido com fins de uma apreciação artística (TELLES, 2004). Ato este que desvela as potências inventivas dos diretores e criadores de histórias (roteiros), bem como as personagens que tipificam as verdades mais profundas da alma dos inventores. Obviamente, Freud não se ocupou da nova arte (cinema), mesmo tendo conhecimento da relação estreita existente entre os aparelhos ópticos e o aparelho psíquico. Freud não escreveu nada sobre o cinema, seu contato com o cinema se deu pela primeira vez em 1909, nos Estados Unidos (RIVERA, 2008).

A produção cinematográfica de Chaplin demonstra na prática que o inconsciente age de forma decisória sobre o consciente. Carlitos (personagem) se tornou uma paródia poética da tragicomicidade da infância sofrida (desafortunada) de Charles Chaplin (autor). Ao que parece Chaplin nunca conseguiu se desassociar dos rastros mnêmicos[2] das mazelas/traumas sofridas na infância (inconsciente), e isto transparecia (consciente) em suas películas por meio da representação dos personagens, cenários e histórias (LOURENÇO, 2008).

Chaplin usou o cinema como palco para promover a sua própria experiência e possibilitou ao espectador a igual condição de fazer experiências a partir do cinema chapliniano. Estas possíveis experiências, tanto do autor quanto do espectador, só eram tangíveis, pois para Chaplin o cinema era uma forma de comunicação (discurso-representativo) de sua própria vida, e para a platéia as representações estéticas assistidas dialogavam com suas histórias cotidianas.

A experiência estética do cinema de Chaplin era capaz, mesmo num cinema mudo, de transportar da língua ao discurso (AGAMBEN, 2008) e fazer representar o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, indo para além da vivência do que passa, acontece ou toca (LAROSSA, 2002). A experiência acontece na obra fílmica de Chaplin porque “...não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação o faz); integra-o á vida do narrador, para passa-lo aos ouvintes como experiência... (BENJAMIN, 1992, p. 38).

Por tudo que fora exposto, é válido reiterar que, cinema (especialmente o chapliniano no que tange a crítica ao pauperismo) e psicanálise são fluidos do mesmo mecanismo. Valendo-se, enão, da arte como forma de desnude da personalidade camuflada, como assevera RIVERA (2008, p. 09): “Entre a presença de imagens em sucessão e o escuro – o intervalo que o filme nos apresenta (ainda que não o percebamos) -, o cinema pode nos tranquilizar em um mundo homogêneo, ou lançar-nos na vertigem de um aleph. A arte, podemos dizer de uma forma geral – e, portanto, sempre um tanto grosseira -, desperta no homem o que há nele de mais agudo e essencial, trazendo à tona, numa brecha fulgurante, o que faz dele um sujeito. (...) à psicanálise interessa esse mesmo ponto agudo da constituição, da dor e da fruição do sujeito. A psicanalise nasce entrelaçada à arte...”

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 05 de Dezembro de 2014]



[1] Sobre o surgimento de “O Vagabundo”, Chaplin pondera: “...a caminho do guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição (...) Não tinha nenhuma ideia sobre a psicologia do personagem. Mas, no momento que assim me vesti, as roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele já havia nascido. Estava totalmente definido” (CHAPLIN, 1965, p. 141, 142).
[2] “A memória é a capacidade de registrar, manter e evocar as experiências e os fatos já ocorridos (...) Tudo o que uma pessoa aprende em sua vida depende intimamente da capacidade de memorização (...) Alguns dos principais pesquisadores atuais em neurociências e comportamento atribuem papel central da memória na própria definição e na constituição do ser humano. (...) somos aquilo que recordamos (ou que, de um modo ou de outro, resolvemos esquecer)” (DALGALARRONDO, 2008, p. 137).


::Referências Bibliográficas::

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da Experiência e Origem da História. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
ALVES, Giovanni. A Batalha de Carlitos: Trabalho e Estranhamento em Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Revista ArtCultura. Uberlândia, v. 7, n. 10, p. 65-81, jan-jun. 2005.
BAZIN, André. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2006.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Magia e Política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
CHAPLIN, C. História da Minha Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – Aspectos da Vida Cultural da Classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
LARROSA, Jorge, Notas sobre a Experiência e o Saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação. Campinas, nº 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.
LOURENÇO, Júlio César. Os conflitos de Carlitos frente às Contradições da Sociedade Moderna. Revista Anagrama: Revista Cientifica Interdisciplinar da Graduação da USP, v. 2, n. 2, p. 90-106. 2008.
RIVERA, Tânia. Cinema, Imagem e Psicanálise. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2008.
SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo: Cultrix, 1975.
TELLES, Sérgio. O Psicanalista vai ao Cinema: Artigos e Ensaios sobre Psicanálise e Cinema. São Paulo: EdUFSCar, 2004.