sábado, 28 de fevereiro de 2015

Carteiras, carteiros e cartas vazias


"Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não".
José Saramago (1922–2010)

Escrever cartas é uma habilidade de humanização. Demonstra a capacidade de se interessar pelo outro, superando o egoísmo narcisista que brotam, invariavelmente e sorrateiramente, nos corações da gente quanto gente. As cartas são lampejos de solidariedade, intento dos que superaram o passado, mas sabem que no pretérito não há conjugação verbal existencial e, então, precisa buscar notícias daquilo que ficou para trás. Escrever uma carta requer intencionalidade, propósito, sentimento, vivência, história, comiseração, compaixão... pois falar “besteira” é até tolerável nesta sociedade do bate-papo, porém escrever “besteira” ainda não é tão aceitável.

A alfabetização ensina as pessoas a escrever letras que por não encontrarem significado temporal se perdem, e ali ficam assentadas nas carteiras. Tornam-se gente alfabetizada, mas que não entenderam para que escrever. Insere-se numa escolarização que vale-se da escrita como escrava do saber, esquecendo-se que é da escrita que se encontra a liberdade para os ideais e idéias. Saber escrever não nos torna escritores, apenas nos adestra para a medíocre vivencial coletiva. O que nos diferencia dos outros animais é a capacidade de registrar em linhas metódicas as mais inconstantes histórias, de juntar letras que agregam significados para além do que se lê, de interpretar nos códigos linguísticos as bases epistemológicas indecifráveis da vida.

Escrever só é escrita quando feito a mão-livre, pois estas letras digitadas (ou datilografadas) de computadores  e máquinas suplantam as subjetividades que borrariam as formas e arredondamentos consonantais/vogais. Quando se escreve deixa-se a letra ser um escrito à parte, denunciando as frustrações, desenquadramentos, inconformidades, erros, deslizes de gente que entende que escrever é um ato essencialmente humano. Quando se escreve com mãos-livres, as alegrias, paixões, surrealismos, utopias e euforias são igualmente mais perceptíveis (chegam a ser tangíveis). Assim quando se escreve, está se escrevendo para além dos registros gráficos linguísticos. Por isto, escrever é mais que por letras em ordem cognoscível, é preciso ser feito a mão-livre, para ser livre.

Ao findar do gênero escritores, finda-se os carteiros, que tinham a mais nobre missão de fazer as histórias chegarem aos destinos mais improváveis e reconectar pessoas. Sem emissor, sem mensagem, sem destinatário, sem vida, sem histórias a serem contadas, então, não se justifica ter carteiros para uma geração que não escreve. Sendo assim, tristemente nos acostumamos com a perda de nossa idiossincrasia, toleramos receber malas-diretas e newsletter, que não tem nada escrito, apesar de tantas letras, desenhos e estéticas mercadológicas. São meros spam’s a serem ignorados. Enfim, falta-nos personalidade e pessoalidade, falta-nos escrever.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 28 de Fevereiro de 2015]

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Cegos, corcundas e lesionados


“sábio é o homem que chega a ter consciência de sua ignorância”.
Barão de Itararé (1895-1971)

A cada geração um novo perfil existencial se reformula, agregando valores do passado, superando limitações de outrora e recriando novas deformidades. Estar vivo é andar em metamorfose. No presente século três deficiências patológicas são imanentes à existência: ser cego, corcunda e lesionado. Cego por usar muito o celular, tablet, notebooks e PC’s em geral com uma proximidade errada e iluminação inadequada; está é uma geração de crianças com pouca visão. Corcunda por igualmente usar os aparelhos supra citados anteriormente com a postura errada, dilacerando paulatinamente a coluna e provocando uma inevitável encurvadura; está é uma geração de pessoas entortadas. Lesionado porque, a despeito da má utilização dos referidos equipamentos, fica-se (e fixa-se) por horas a fio digitando (catando letras) nos teclados virtuais; está é uma geração de gente com dores precoces.

Da tríade: “cegos, corcundas e lesionados” desencadeia-se uma evolução duvidosa sobre a nossa identidade social, ideológica e mitológica. Escuta-se esbravejar uma suposta falta de tempo que não coincide com a realidade do tempo empregado em redes sociais e bate-papos. A verdade, obscurecida, é que estamos mais carentes de afetos, por esta razão buscamos conversar ao máximo com o maior número de pessoas (o mais virtual possível) para que não haja tempo de nos a perceber no vazio que habita em nós fora das conexões da internet. Estamos correndo muito para cansarmos ao máximo e assim não termos tempo de contemplar a inutilidade de nossa jornada. Sonhamos alto para não ter que enfrentar a dura realidade que assola as noites silenciosas. Desta maneira, não seremos chamados de fracassados, mas sim de sonhadores (codinomes e pseudônimos da virtualidade dos nossos discursos).

Da tríade: “cegos, corcundas e lesionados” revive-se, tipologicamente, o corcunda de Nortre-Dame que reconhece sua submissão tola a um sistema frágil e corrupto. Reacende em nós a chama da liberdade, mesmo nunca tendo estado lá. Denuncia nossa “feiosidade” frente ao mundo de belezas estilizadas com películas de fotos e ajustes de fotoshop. Sendo assim, além de corcunda personifica um frankenstein que se esconde nas letras de um bate-papo qualquer, tampando as mais terríveis deformidades de caráter com medo de sermos visto como somos, sem sorrisos, sem efeitos, apenas sendo humano. Gente esta que aprendeu a submeter-se aos padrões mais ridículos por puro desdenho ao criador, gente que esquece que mesmo sendo criatura temos personalidade, temos identidade. Somos, então, tão diferentes que não mais nos vemos como iguais, desprezando o outro que, para além da virtualidade, também sucumbi a terrível realidade da vida.

Ser “cego, corcunda e lesionado” não é um estereótipo moderno, é o que nos define. Longe de ver a realidade por causa da sombra que esconde a verdade óbvia; encurvados frente a uma máquina que escraviza impetuosamente as mentes infantis de gente adulta por causa das facilidades inexplicáveis; lesionados no coração, na alma e no espírito, sendo a mão apenas um sinalizador que a dor é mais profunda por causa de nossa integração humanística. Sim, somos cegos, apesar de vermos vários rostos no facebook, semblantes que não significam nada. Sim, somos corcundas, apesar de discursarmos superioridade machista ou feminista, pouco importa, ambos perderam a noção de equidade. Sim, somos lesionados, apesar de sermos a geração do bem-estar fitnes, que faz pouse para o outro admirar ou repudiar. Tristemente, nos tornamos um retrato de tudo àquilo que evitamos histórica e socialmente.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 12 de Fevereiro de 2015]