quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Dos mitos acadêmicos: curso de Administração


“É mais necessário estudar os homens do que os livros”.
François La Rochefoucauld (1613-1680) 

Cada professor, em sua prática acadêmica, têm suas próprias dúvidas e inquietações que persiste em atormentar as normoses aulisticas. Um destes fantasmas que, particularmente, me assombra é perceber que quase na totalidade dos alunos do curso de administração, das instituições de ensino superior que tive contato, não têm seus estudos financiados pelas empresas que trabalham. Há mais de uma década faço a mesma pergunta em sala de aula e obtenho quase sempre os mesmos resultados: “levante a mão quem têm seus estudos financiados pela empresa que trabalham?”, resposta: uma ou duas pessoas levantam as mãos (numa sala de mais de cem alunos - isto mesmo, mais de cem alunos!). Dai, questiono: “Por que a empresa que vocês (alunos) trabalham não paga a faculdade para vocês?”, as respostas mais comuns são: “o meu chefe tem medo de eu (aluno) saber mais que ele”, ou, “porque é uma empresa que só pensa no lucro”. Então, faço a pergunta crucial: “por que vocês (alunos) estão estudando?”, a resposta é dada em coro: “porque quero sair da empresa que trabalho para ganhar mais”. Então, creio que ai está a resposta para primeira pergunta.

A ilusão de que as empresas (cargos de chefia em especial) têm medo da academia é um mito bem difundido aos discentes. Mito este muito bem arquitetado e que mascara a fragilidade moderna. Não acredito que as empresas tenham medo de que os funcionários, agora alunos, aprendam o suficiente para ameaçar qualquer cargo dentro da empresa, pelas seguintes razões: 1) O que se aprende num curso de administração quase sempre não tem muito a haver com administrar, mais sim com ser o “funcionário do mês”. 2) A maioria dos alunos de administração, na minha vivência acadêmica, nunca tiveram experiência de administrar empresas/negócios, na verdade querem um emprego fixo e com estabilidade, por isto estudam para concurso público, não para empreender. 3) O trabalho, para boa parcela dos alunos, é apenas um meio para se pagar contas no fim do mês, não é um negócio, uma paixão, uma idéia, um ideal, é apenas trabalho, qualquer trabalho. 4) Grande número dos que estudam administração, reitero que digo a partir do que vivencio nas IES, escolheram o curso de administração por este ser o mais genérico e quase sempre o mais barato, então, não gostam de fato da área da administração, apenas querem ter diploma de curso superior, e o curso de administração foi o caminho que restou. Por tudo isto, e mais uma bucado de coisas que não é propício externar aqui, insisto: não acredito que as empresas se omitem de financiar os estudos dos funcionários por medo.

Outro fato que precisa ser destacado neste discurso é que as empresas não tem intenção de financiar os estudos para os funcionários, pois uma parcela considerável dos alunos não tem carreira, apenas trabalham. É preciso diferenciar ambos os conceitos: quando digo “carreira” pressuponho uma intencionalidade, um rumo, uma direção, uma planejamento, um foco, um norte. Dai quando peço para pegarem os currículos deles mesmos e verificarem se de fato estão construindo uma carreira, então, é perceptível que não. Isto se torna notório, pois dois anos trabalharam no Peg Pag da esquina, um ano de call center, dois anos de caixa de supermercado, seis meses num Pet Shop, e por ai vai. Não há internacionalidade, não há carreira, apenas há trabalho (qualquer trabalho!). Então, não justifica financiar os estudos para alguém que não tem carreira. Obviamente, que isto não quer dizer que não se possa mudar de empresa, mas que se permaneça no mesmo ramo de atividade. A questão aqui não é quanto tempo você fica numa empresa, não é acerca do turnover que estamos discorrendo, mas sim quanto tempo você tem de experiência num determinado ramo de atividade. É possível trabalhar a vida inteira e nunca ter tido uma carreira.

Ademais, acredito plenamente que a garota que vende bombons na faculdade tem mais proximidade com os conteúdos, competências e habilidades do curso de administração do que o gerente de uma grande empresa, pela seguinte razão: Administrar é, sobretudo, ter autonomia sobre todos os processos empresariais, então, isto não tem haver com salário e nem com cargos hierarquizados, mas sim com a capacidade de interferir nas etapas. A garota dos bombons tem que decidir quantos bombons vai produzir por dia, tem que prever demanda para não haver desperdício, tem que saber a preferência dos clientes para levar os sabores que agradam estes, tem que fazer leitura de cenário para antever aos concorrentes, tem que criar a estética das embalagens, tem que analisar a forma de logística de transporte dos bombons e o sistema de armazenagem para o momento da venda, tem que ter noção de custo, precificação e marketing. Enfim, a garota dos bombons, de fato, administra o negócio. Ela é responsável e detém autonomia para interferir em qualquer etapa do negócio, inclusive detêm o poder de decisão de não mais produzir bombons, se assim quiser. De contra partida, o gerente de uma grande empresa tem uma autonomia limitada, precisa de autorização para implementar várias mudanças, reporta a vontade da diretoria da empresa, segue instruções dos administradores (ou donos) do negócio, e quase sempre só tem poder de decisão na área em que é gerente, limitando a abrangência empresarial. Reitero: a questão aqui não é quem ganha mais, mais sim quem realmente é administrador. As empresas até poderia estar dispostas a financiar os estudos dos funcionários, se realmente acreditasse que estes poderiam ser administradores, não apenas gerentes/supervisores.

O curso de administração deveria ser mais provocativo e menos conformista. Deveria ter mais disciplinas que estimulassem os alunos a arriscarem num novo empreendimento. Deveria possibilitar tomadas de decisão com consequências reais. Deveria discutir mais sobre administração do que ganhos ou benefícios. Deveria haver menos auto-ajuda e mais conteúdo. Deveria ter menos euforia e mais motivação. Deveria possuir menos dinâmicas de grupo e mais aprofundamento teórico. Deveria ter uma parte de prática empresarial real, ao invés da Empresa Júnior ser uma mera organizadora de eventos e shows dentro das faculdades. Enfim, o administrador tem que administrar. O curso de administração não é lugar para formação de funcionários. O curso de administração não é para aqueles que querem o lugar do chefe. O curso de administração não é para quem quer prestar concurso público de nível superior. O curso de administração não é para aqueles que sentam numa carteira e escutam adestradamente o professor para passar na disciplina. Então, o curso de administração é um convite para gente ousada, destemida, engajada e comprometida. Gente esta que não se limita ao professor ou a instituição, mas atreve-se ir além dos limites e experimentar o novo – arriscar-se por completo, surpreender a sociedade/mercado, administrar com excelência. Portanto, “por que as empresas não financiam os estudos dos funcionários?” Outra resposta possível poderia ser: pois para ser funcionário não precisa ser administrador – e vice versa.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 27 de Agosto de 2015]

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O desafio da inutilidade


"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Clarice Lispector (1920-1977) 

Ser útil é muito cansativo! Não sobra tempo para perder, não resta opções sem resultados, não há espaço para desinteressar-se, não carece de quietude. Ser útil é confundir-se com que se faz. É ser julgado pelo que se produz. É caminhar sempre em frente. Ser útil é muito chato! Descobrir-se útil é emaranharem-se numa teia horrenda de interesses, trocas e desgastes. O útil é interessante, pois sempre tem algo a oferecer para outrem, sempre tem um conselho motivador, sempre está pronto para o que quer que precise, sempre tem que estar “lá”. Ser útil é uma futilidade! O útil não vê utilidade em cultivar flores, apenas quer árvores frutificas, pois estas lhe dão retorno. O útil não vê utilidade em andar a pé, apenas quer se locomover rápido, pois o que lhe interessa é chegar logo “lá” e rapidamente ir para outro lugar “lá longe”. O útil não consegue criar identidade, pois não passa tempo suficiente “lá”.

No cenário contemporâneo, infelizmente, as nossas relações se dão pela capacidade de utilidade das pessoas. Tristemente, somos amigos daqueles que podem nos oferecer algo. Dificilmente teremos amigos inúteis, pois afinal estes não servem para nada. Estranhamente, amigos tem que ser úteis, tem que produzir algo, tem que oferecer alguma coisa, tem que ter relevância. Neste contexto de utilidades não resta espaço para amigos deficientes físicos ou mentais, pois estes têm pouco a oferecer de útil frente aos padrões de sucesso moderno. Quase não temos amigos crianças, pois igualmente estes são infantis, e não temos tempo a perder com coisas de crianças. Poucos são os que têm amigos velhos, pois estes já não tem mais vigor para produzir algo. Portanto, para o que tornamos, os amigos tem que ser úteis.

Ao findar um filme queremos entender a relevância da história ali contada, como se tudo na vida tivesse que ter sentido ou tivesse que ter finais lógicos e meritocráticos. Filmes “sem finais” nos deixam inquietos e frustrados, pois queremos sempre que as coisas cheguem há algum lugar, e saber que nem sempre no fim as coisas dão certo, ou que às vezes nem se tem um fim, produz desordem mental e emocional às nossas vidas úteis. Não suportamos o estado de inconclusão, de não obviedade, de contemplação, de suspensão. Nos tornamos úteis demais para suportar o inacabado. Nos tornamos úteis demais para tolerar a inutilidade de qualquer coisa. Nos tornamos úteis demais para perceber os detalhes de uma história. Nos tornamos úteis demais para entender aquilo que precisa de sensibilidade. Nos tornamos úteis demais para não entender algo.

Enfim, quero redescobrir minha grande inutilidade, e então, reaprender a viver!

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 12 de Agosto de 2015]