segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sobre danças, músicas e outras insanidades


“O homem tem medo de sua espontaneidade (...) o homem temerá viver apelando à sua espontaneidade até que aprenda a provocá-la”.
Jacob Levy Moreno (1889-1974) 

Enquanto pequenos dançamos, sem ninguém nos ensinar, sem ninguém nos constranger. Dançamos, pois é isto que se faz quando se está feliz. Dançamos sem saber os passos ao certo, sem ter uma coreografia coletiva a ser imitada por todos, sem ter muita ginga ou molejo. Não era preciso saber dançar para dançar. Simplesmente dançávamos. Dançar é um ato de liberdade, ousadia e rebeldia. Dançar é confrontar o adestramento moderno de ritmos enjaulados e bailarinos emudecidos. Dançamos, pois é isto que fazemos quando somos.

Lá também cantávamos, desafinados, meio gritado, um tanto quanto engargantado. Contudo, isto não importava, é preciso por pra fora toda sonoridade que ecoa dentro de nós. É preciso dar voz e ritmo a nossas desilusões e ilusões. Quando pequenos não precisávamos saber a letra da música para cantarmos, afinal, cantar não é uma função decorativa do cérebro. Cantar é, antes de tudo, um ato de neurose eufórica de existência humana. É um estereótipo de nossas desconformidades. Cantávamos, pois é isto que embala nossos corações e razões. Cantamos, pois é preciso romper o silêncio do que somos.

Depois de tantas, crescemos. Então, nos esquecemos de como se dança, ficamos envergonhados por não saber os passos repetitivos dos iguais. Lá, dançar não é pra todos, é espetáculo a ser admirado, contemplado, mas nunca partilhado. É muito triste não poder mais dançar, mas mais triste é admirar os que dançam, pois isto é contemplação nostálgica daquilo que um dia fomos. Quando dançar for para poucos, então, muitos perdem. Dançar é tipo saltar, desestabilizar o corpo, confundir as possibilidades... dançar tem que ser mais que harmonizar, é preciso que haja destoação. Dançar é, portanto, uma apresentação única, às vezes, na maioria das vezes, sem espectadores. Dançar é o que fazemos quando descobrimos o que somos.

Lá pelas tantas, daquela mesma época, nos dizem que cantar é uma arte clássica, com difíceis melindres artísticos. Para tanto, elitizaram a música. Tornaram as notas inalcançáveis, ditaram as letras do que é aceitável, rotularam a cultura popular regional como algo inaudível. Tristemente, e inevitavelmente, criaram o karaokê. Neste tempo, catamos apenas as letras já cantadas, no ritmo já dado, nas notas já postas. Enlatamos a música. Cantar bem poderia ser tipo aquelas frases incognoscíveis que balbuciávamos quando pequenos, que tinham todo sentido para além das palavras. Cantar bem poderia voltar a ser despretensioso, sem sequência predeterminada, para dar o tom que estiver disponível para colorir quem de fato somos.

Cantar e dançar são expressões de nossa identidade social, é o que nos define, nos distingue, é o que desnuda nossa mais bela insanidade idiossincrática. Perdemos muito por só andar e só falar, por só correr e gritar. Perdemos muito por não mais conseguirmos nos expor ao ridículo da música e do baile. Tristemente, nos marionetamos aos limites dos sons pré-formatados e igualmente nos fantocheamos na sutileza das coreografias pré-estabelecida. Enfim, domesticamos nossa insanidade, e a comprovação de tal genocídio artístico é que perdemos a habilidade de dançar e cantar, como fazíamos enquanto pequenos.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 10 de Outubro de 2015]