segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A desigualdade da escola


“É por isso que se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas ideias”.
Immanuel Kant (1724-1804)

Para Castel (2008), a escola até reivindica o princípio da igualdade, mas é “incapaz de garantir a paridade dos grupos sociais” (p. 50), perspectiva igualmente partilhada por Burawoy (2010), ao afirmar que “embora pareçam neutras, as escolas presumem a posse de um capital prévio” (p. 19). Para Bourdieu (2014), esse capital prévio é de origem elitizada e de classe dominante.

Para Bourdieu (2007) a ação pedagógica transmite conteúdo, mas também transmite “a afirmação do valor do conteúdo” (p. 257). Por esta razão, afirma: “[...] A escola contribui, portanto, para reproduzir a estrutura das relações entre as frações das classes dominantes fazendo com que as crianças originárias de outras classes ou de outras frações não possam extrair de seus títulos escolares o mesmo lucro econômico e simbólico obtido pelos filhos da grande burguesia de negócios e do poder por estarem melhor colocados para relativizar os julgamentos escolares” (Idem, p. 265).

Segundo o autor, a formação escolar, assim como a diplomação/titulação escolar, está associada diretamente ao capital social do indivíduo. Por essa razão, “o diploma não passa, em última instância, de uma caução facultativa que serve para legitimar a herança” (BOURDIEU, 2007, p. 334). Para exemplificar essa lógica da hereditariedade profissional condicionada à hereditariedade escolar, fruto direto de um capital global, o autor cita a profissão de médico como exemplo mais palpável. Ele escreve a partir do contexto da França, que não difere do contexto do Brasil nesse quesito, pois número considerável de acadêmicos de medicina são filhos de médicos, comprovando o processo de legitimação da herança.

As juventudes pobres brasileiras não apresentam capital global competitivo, ou, ao menos, há de se admitir que o capital global partilhável nas classes populares é destoante dos esperados pela escola e pela cultura dominante (BOURDIEU, 2014). Então, segundo Duarte (2012), há uma descrença nos instrumentos estatais como reguladores de equidade e oportunidade, sendo, o Estado corresponsável pelo desinteresse dos jovens pela educação. O autor endossando Bourdieu, afirma que: “Observam-se, nos sistemas educacionais brasileiros, mecanismos sutis de exclusão dos jovens da escola, garantidos por um complexo discurso que preconiza a democratização da escola para todos, mas, na verdade, a poucos reserva a continuidade e o sucesso escolar” (DUARTE, 2012, p. 194).

Para Duarte (2012), a escola deveria ser capaz de dialogar com a realidade dos alunos, contribuindo para a formação de sujeitos críticos, capazes de refletir sobre a realidade histórico-social do bairro em que moram. Contudo, segundo postula, a escola é, contrária e intencionalmente, o principal agente de manutenção das desigualdades, inculcando nos jovens a obediência e a aceitação, assim como a não identificação com a realidade local.

Nesse sentido, Nidelcoff (1980) defende que a função do professor deveria ser a de ajudar os alunos a compreender a realidade, a se expressar a partir dessa realidade e, por fim, descobrir-se como elemento de mudança na referida realidade. Segundo a autora, “isto se fundamenta numa visão do homem como ser histórico que se realiza no tempo” (p. 6-7). Contudo, como assevera Duarte (2014), “a cultura escolar aparece distante da vida dos jovens, de suas necessidades, e muito pouco contribui para o desenvolvimento humano e social” (p. 89), o que dificulta demais a permanência dos jovens na escola, fato este igualmente perceptível nos relatos dos jovens.

Para Duarte (2012), a escola no contexto liberal desempenha um papel ideológico e, por vezes, utópico em relação à ascensão social das classes populares, ascensão esta que se daria, supostamente, por consequência direta do mérito e do esforço individual desses jovens, resgatando, assim, a mesma lógica do protagonismo, agora, porém, estabelecida a partir das relações escolares. Tal perspectiva reafirma, mais uma vez, a rota de colisão entre as expectativas subjetivas e as condições objetivas. Segundo o autor, é por essa razão que se estabelece uma dialética perversa, que se desdobra em dois momentos: primeiro, no fracasso escolar dos jovens pobres e, segundo, no movimento de rejeição da escola.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 12 de Março de 2016]



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
BURAWOY, Michael. O marxismo encontra Bourdieu. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.
CASTEL, Robert. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones? Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
DUARTE, Aldimar Jacinto. Jovens urbanos da periferia de Goiânia: Espaços Formativos e Mediações Escolares. 2012. 216 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Goiás, 2012.
DUARTE, Aldimar Jacinto. A educação escolar e os processos de enfrentamento da realidade urbana por jovens da periferia. Revista Educativa. Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Goiânia, v. 17, n. 1, pp. 75-92, jan/jun. 2014.
NIDELCOFF, Maria Tereza. A escola e a compreensão da realidade. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.

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